A matéria abaixo foi publicada na Folha de São Paulo há poucos dias, e retrata visão muito próxima da minha em relação ao mundo dos vinhos. O filme de Nossiter é muito interessante e o livro vem agora a calhar para compreender algo mais sobre o vinho "democrático".
"Gosto é uma expressão da liberdade pessoal"
Jonathan Nossiter diz que "enochatos impedem democratização do vinho"
"O que me atraiu foi a ideia de que o vinho pode se misturar com o cinema. É um livro aberto, uma viagem para se descobrir o prazer pessoal"
DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO
"Gosto e Poder", de Jonathan Nossiter, é um livro inspirado, provocativo, divertido e politicamente incorreto que propõe uma reflexão sobre a liberdade pessoal e a formação do gosto. O diretor de "Mondovino" faz um criativo "mélange" (mistura) de vinhos e cinema, suas duas especialidades.
"Bordeaux é prosa, Borgonha é poesia", escreve. Para mostrar que "millésimes" e longas têm tudo a ver, compara: "Um Fellini "sem nada de extraordinário" sempre será melhor que o maior filme de Luc Besson". São formas divertidas de discutir algo sério.
Para Nossiter, defender o vinho é uma forma de afirmação cultural, assim como proteger a literatura e as artes. Por isso, volta suas baterias contra a indústria uniformizadora do vinho e contra os críticos, muitas vezes patrocinados por essa mesma indústria, que impõem padrões mundo afora.
"A coisa mais incrível do vinho é que ele resiste a uma definição. Cada um pode ter uma sensação diferente ao experimentar uma garrafa. É uma alegria para quem ama a incerteza. Mas isso também abre a porta para qualquer palhaço, ladrão e impostor possível. Noventa por cento dos críticos de vinho no mundo não tem a menor formação enológica", afirma.
Para Nossiter, os jargões utilizados pelos críticos são limitadores, autoritários e muitas vezes sem sentido. Cita a lista de frutas, as metáforas utilizadas para a descrição dos sabores. "Aqui no Brasil 90% dessas frutas não existe. Acho grotesco. Mesmo em países com culturas profundas de vinho, como França e Itália, os enochatos estão impedindo o prazer e a democratização do vinho. É a globalização da burrice."
Americano, filho de jornalista do "New York Times", Nossiter foi criado na França, Itália, Índia e Inglaterra. Fez faculdade nos EUA, onde trabalhou como garçom. Usando o conhecimento que adquiriu na França, virou sommelier de restaurantes badalados em Nova York. Sempre propôs vinhos acessíveis e que expressassem compromisso ético dos produtores.
Prazer
Ainda que a crítica à imposição do gosto padronizado (americano, por enquanto) seja a mesma de "Mondovino", ele explica que o livro não é uma continuação do filme. "Depois do "Mondovino", achei que tinha terminado totalmente minha relação com o vinho. Mas vi a reação que o filme provocou, muito complexa. Nunca tinha imaginado. Isso me fez repensar a importância do vinho no mundo." Um convite da editora Grasset levou à edição francesa, mais enxuta que a brasileira.
"O livro não é sobre vinho. Me deu vontade de pensar na minha relação pessoal com o vinho. Por que me traz tanto prazer carnal, sensual, mas também intelectual? Seria possível comunicar isso de um jeito que foge do enochatismo? O que me atraiu também foi a ideia de que o vinho pode se misturar com o cinema. Poderia falar das minhas preocupações com o cinema, com a cultura. É um livro aberto, uma viagem para se descobrir o prazer pessoal. O gosto é uma expressão fundamental da liberdade pessoal."
A "gastroutopia", em sua versão cinéfila, levou Nossiter a propor a formação da associação "cinema dependente", que está organizando com outros cineastas. A ideia, segundo Nossiter, é discutir novas formas de produção e distribuição. É uma associação informal, sem nenhum compromisso, apenas para a troca de experiências. "O cinema como expressão cultural está ameaçado. A concepção que tínhamos dele já acabou. Precisamos resgatar o cinema como ato comunitário." (MARCOS STRECKER)