8 de julho de 2007

Afundamento do Araraquara

Sou apaixonado pelos assuntos da Segunda Guerra Mundial, com uma biblioteca razoavelmente vasta nos tópicos correlatos. A “Folha de São Paulo” de hoje traz um relato comovente e matéria interessante sobre o afundamento do navio Araraquara, nas costas de Sergipe durante a noite de 15 de agosto de 1942, vítima do submarino alemão U-507. Aconselho a leitura do artigo na integra, no caderno “Mais” do jornal mencionado, que disponibilizou o texto histórico de maneira aberta e pública a qualquer interessado através do seguinte link: www.folha.com.br/071581. De 142 pessoas a bordo, 131 faleceram e nos dias próximos, mais dois ou três navios brasileiros foram a pique em virtude de ataques alemães, o que acabou por provocar a entrada do Brasil na guerra, por declaração de Getúlio Vargas em 31.8.1942. No total, durante aquele evento global, foram afundados 40 barcos brasileiros pelas forças do Eixo.

A Folha relembra que a população costeira se indignou com os corpos que vieram a praia, e apavorados com a hipótese de invasão por forças alemãs. De acordo com o jornal, também, Milton Fernandes faleceu em 1994, melancólico, e quase nunca tratava dessa passagem histórica com amigos e parentes.

RELATORIO DA ULTIMA VIAGEM DO NAVIO MOTOR "ARARAQUARA"
MILTON FERNANDES DA SILVA

Ás 14 horas do dia 11 de Agosto de 1942, zarpou do porto do Rio de Janeiro, com destino ao de CABEDELO e escalas em S. Salvador, Maceió e Recife, o navio-motor "Araraquara" sob o comando do capitão de longo curso, Lauro Augusto Teixeira de Freitas, levando á seu bordo 81 homens de guarnição e 96 passageiros.

No dia 13, quando em viagem RIO-BAHIA, ás 13 horas, achando-me de serviço, por ordem do Snr. Comandante, dei alarme para o serviço de salvatagem, o qual foi feito com a maxima presteza e absoluta ordem, não só por parte da guarnição como dos passageiros.

Fundeamos ás 2 horas e 5 minutos, no ancoradouro do porto do SALVADOR no dia 14. Ás 7 horas atracamos em frente do armazem nº. 5, iniciando-se, então, as operações de carga e descarga, ficando a sahida marcada para o dia seguinte ás 11 horas. Conforme fôra marcada no dia anterior, ás 11 horas do dia 15, deu o Snr. Comandante inicio a manobra de desatracação, seguindo-se com destino ao porto de Maceió onde deveriamos chegar ao amanhecer do dia 16. Apesar de fortes ventos, mar e chuvas constantes, a viagem corria normalmente,

Ás 21 horas, achando-se o navio quasi de trávés com a cidade de Aracajú, com o clarão da mesma á vista, eu dormia no meu camarote, quando fui despertado por um estampido ôco, seguido de estremecimento do navio. Levantei-me incontinenti, ainda com o barulho da explosão e tentei acender a luz, mas já não havia energia eletrica. Comprehendi, então, que o navio havia sido torpedeado. Vestia eu a calça do uniforme, por cima do pijama, quando aproximou-se o Comandante perguntando ao oficial do quarto, 2º. piloto, Benedito Iunes, o que havia acontecido. Foram estas as suas palavras: -"Que foi isto, Benedito?"

O referido oficial preso de grande nervosismo nada respondeu, tendo eu dito então:

- Fomos torpedeados, e o navio está adernando consideravelmente. Á este tempo a guarnição já se aproximava do passadiço aguardando a ordem do comando, que foi a seguinte:

- Ponham os colêtes salva-vidas e corram as baleeiras.

Foi executada imediatamente a ordem do Comandante:

Ao passar pela baleeira n. 1, em caminho da n. 3, da qual me cabia o comando, vi já iniciando o serviço de arriar a embarcação, o Comandante, o 1º. maquinista e outros que faziam perto da guarnição da mesma.

Quando chegava á baleeira n. 3, após ter passado aproximadamente 1 minuto da 1ª. explosão, estando o navio já bastante adernado para boréste, lado do mar, onde bateu o torpêdo, novo estampido foi ouvido, seguido logo por outra explosão que incendiou o porão n. 3, e derrubou parte do botequim, tendo a tolda do mesmo arriado sobre a minha baleeira, inutilizando-a completamente. Vendo a impossibilidade de arrial-a, pensei em salvar parte da guarnição, e subi ao této da ultima tolda á procura das balças, as quais, não encontrei, pois, já haviam cahido ao mar, dado a grande inclinação do navio. Voltei á baleeira, não encontrando mais a guarnição, pois, a mesma, vendo a impossibilidade de arrial-a, procurára outros meios de salvação. Ordenei então, aos passageiros que estavam desorientados que fossem para o outro bordo, e procurassem salvar-se da melhor maneira possivel, pois, aquela baleeira não seria arriada; dizendo mais, que me acompanhassem. Sahi de gatinhas pelo convés, seguido de varios passageiros e desci cuidadosamente pelas balaustradas das toldas até chegar ao costado que já se achava na horizontal, estando, assim, o navio completamente deitado. Corri até a quilha, fazendo-me ao mar, certo de que seria impossivel salvar-me. Nadei um pouco auxiliado pelos vagalhões que me afastavam rapidamente do navio. Parei e pude presenciar o mesmo, enterrar, ou melhor, mergulhar a pôpa, ficando completamente em pé e desaparecendo.

Não houve tempo para ser arriada nenhuma baleeira, tendo sido empregado todos os meios para isso.

Com o vácuo produzido pelo afundamento do navio, fui um pouco ao fundo, tendo bebido bastante agua com oleo e levado diversas pancadas com os destroços do mesmo. Quando voltei á superficie, e consegui respirar, agarrei-me a uma caixa que boiava, carga do porão n. 3. Nisto avistei um pedaço da tolda do botequim e nadei para êle, onde subi e pude recolher mais 3 pessoas, sendo: o 3º. maquinista, Eralkildes Bruno de Barros, o moço do convés, Esmerino Slina Siqueira e um oficial do exercito, passageiro do navio. Seguiamos á mercê das ondas, sem encontrar outras pessôas nas proximidades, á quem pudessemos recorrer. Fui então apanhando e colocando sobre a tabua tudo que passava á meu alcance, e que julgava ter alguma utilidade. Assim foi que apanhei uma pequena prancha, um cavalête, um saco de farinha de trigo e um balão defensa, do qual aproveitei o chicote do cabo para amarrar sobre as taboas a pequena prancha e o cavalête, para que o mar não os levasse, pois, os mesmos serviam de lastro, isto é, faziam peso na taboa, afundando-a, evitando que a crista das vagas as arrebentassem.

Durante toda a madrugada avistamos constantes clarões de explosões no local onde afundou o navio, explosões estas, que creio terem sido nas garrafas de ar comprimido e nos tanques de óleo. Continuamos sobre as taboas, notando que o mar nos aproximava cada vez mais para terra, sempre em frente a barra do Aracajú.

Assim passamos o resto da noite de 15, todo o dia 16, quando aproximadamente, ás 2 horas do dia 17, o marinheiro começou á dar signais de perturbação mental, pedindo alimento, dizendo ter ouvido bater a campainha para o café, depois tentou agredir o tenente, o que evitamos; em seguida, desesperado de fome e sêde atirou-se ao mar, sendo impossivel qualquer salvação. Logo após, o segundo tenente começou a demonstrar o mesmo sintoma, perguntando pelos colégas. Lembrei-me, então de indagar seu nome e êle respondeu ser Oswaldo Costa. Tentei acalmal-o, foi impossivel, atirou-se nagua. Com cuidado para não haver desequilibrio nas poucas taboas que nos restavam, agarrei-o pelas botas, conseguindo colocal-o novamente sobre as mesmas. No entanto, poucos minutos depois, colocando-se numa atitude agressiva, dizendo que eu e meu companheiro estavamos embriagados, que ia para casa, fez-se novamente ao mar, sendo desta vez, impossivel salval-o.

Restavam agora, na taboa, sómente eu e o terceiro maquinista. Assim, continuamos sempre avistando o clarão da cidade de Aracajú, para onde eramos levados.

Ao clarear o dia, quando já avistavamos as casas da referida cidade, a vazante do rio COTINGUIBA e o vento terral nos afastou para fóra, fazendo-nos cahir na rebentação dos bancos. Esta acabou de destruir as taboas e nos atirou nagua. Lutamos com a dita rebentação nadando sempre em busca da prancha, pois, esta ainda nos oferecia resistencia, mas ao aproximarmos, eramos atirados novamente á distancia, tornando-se, assim, impossivel agarral-a. Continuamos nesta luta, até aproximadamente ás 9 horas, quando avistamos uma corôa, para lá nos dirigimos. Notei que a maré enchia, e calculando que na préa mar, talvez não désse pé na dita corôa, e que estando fracos, pois, a 36 horas não dormiamos, nem nos alimentavamos, convenci ao meu companheiro que não devíamos descançar e sim nadar para terra, da qual já avistavamos o coqueiros. Assim ficamos sómente uns 10 minutos, afim de refazer as forças e fizemo-nos ao mar, nadando em direção da praia de ESTANCIA, onde chegamos ás 15 horas. Exausto, deitei-me na areia para dormir, julgando ter meu companheiro feito o mesmo, quando fui acordado para beber agua de côco vêrde que êle havia apanhado. Reanimado subi tambem ao coqueiro, derrubando 4 cocos, dos quais bebemos a agua e comemos a polpa. Em seguida puzemo-nos á caminhar, e depois de andarmos 2-½ léguas, encontramos a fazenda da BARRA de propriedade de Manoel Sobral, onde o administrador, Snr. Luiz Gonzaga de Oliveira, preparou jantar e nos ofereceu. Terminada a refeição, o dito administrador mandou dois de seus empregados numa canôa nos levar á cidade de S. Cristovão.

Durante a viagem, foi que conseguimos durmir um pouco no fundo da embarcação.

Ás 21 horas chegamos á dita cidade, e fomos recebidos pelo povo, apresentando-se, em seguida, o Snr. Prefeito, que nos encaminhou á sua residencia, obrigando-nos a fazer uma pequena refeição, enquanto aguardavamos a condução para proseguirmos a viagem até Aracajú. Pedi, então, que telegrafassem á minha família, participando que estava salvo.

Quando terminavamos a refeição, mais um sobrevivente do "Araraquara" apareceu; era o passageiro Caetano Moreira Falcão, que havia dado á praia, numa das balças, e foi recolhido por um pescador. Na referida balça, vinham mais dois passageiros, que morreram lutando com a rebentação. O Snr. Prefeito, levou-nos no seu automovel para Aracajú, onde chegamos ás 24 horas, encaminhando-nos ao Governador do Estado, com quem conversamos alguns momentos. Depois de deixarnos em palacio o colête e a boia salva-vidas que trazíamos comnosco, retiramo-nos para o hotel MAROZZI, onde ficamos hospedados.

No dia seguinte, fomos socorridos e medicados pelo medico do posto assistencia Dr. Moysés.

Fiquei 10 dias impossibilitado de me locomover, por ordem do medico e durante este periodo, outros náufragos foram chegando á Aracajú; disto era informado pelo Snr. Agente, Dr. Carlos Cruz, ao qual pedi que telegrafasse á Companhia, cientificando-a de tudo, assim, como, ás familias que me telegrafavam pedindo noticias dos seus.

Os outros sobreviventes foram os seguintes: José Pedro da Costa, barbeiro, que salvou-se sózinho em um pedaço de taboa; Francisco José dos Santos, marinheiro, e Mauricio Ferreira Vital, taifeiro, que salvaram-se numa das balças, trazendo consigo a passageira, d. Eunice Balman; José Rufino dos Santos, marinheiro, José Correia dos Santos, moço, e José Alves de Móla, carvoeiro, que chegaram á terra montados na quilha da baleeira n. 4, que flutuou emborcada depois do navio submerso, e traziam consigo a passageira, d. Alaide Cavalcante.

Varios cadaveres deram á praia, sendo fotografados pela policia e, dentre eles, pude identificar dois: o taifeiro, Celso Rosas e o cabo Caldeirinha, Pedro Vieira.

As baleeiras no. 1 e 2, tambem deram á praia, mas completamente vasias.

Dia 29, seguimos por ordem da Companhia, para a Bahia, ficando ahi hospedados á bordo do navio "Itaquera", de onde sahimos no dia 4 de Setembro, viajando por terra, com destino ao Rio de Janeiro, onde chegamos ás 23 horas do dia 10.

Consta na cidade de Salvador, que os tripulantes do hiate e da barcaça que foram abordados, sendo a ultima bombardeada, identificaram como de nacionalidade alemã a guarnição do submarino, ficando assim provado e reconhecido os covardes que torpedearam no espaço de 48 horas, 5 navios de passageiros, completamente indefesos.

Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1942.

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